terça-feira, 4 de maio de 2010

Reinações de Kirchner

Em prefácio à edição em espanhol de "Reinações de Narizinho", a presidente da Argentina relembra a leitura e a influência da obra mais célebre do autor brasileiro


Narizinho e Pedrinho, duas crianças fantasiosas, ave@ 8 inquietas e sempre desejosas de saber mais, podiam ser um de nós


CRISTINA FERNÁNDEZ DE KIRCHNERMamãe ou meu avô costumavam atender quando o vendedor de livros tocava a campainha em nossa casa. Era época de vendas em prestações intermináveis. Dicionários em três volumes, imensos e pesados, que apenas aos seis ou sete anos eu conseguia tirar da estante para ler, coleções completas de todo tipo de enciclopédia, revistas e fascículos da Bíblia e outros relatos que minha mãe logo mandava encadernar. A lista seria infinita, dado o tamanho da biblioteca que se foi formando naqueles anos de infância. Mesmo assim, minha memória registra, com absoluta nitidez, a chegada em minha casa da coleção completa daquilo que recordo como "Las Travesuras de Naricita e Perucho" [as reinações de Narizinho e Pedrinho], de Monteiro Lobato. Eram livros de capa dura, coloridos, com os perfis dos rostos de Narizinho e Pedrinho desenhados na capa em dourado, e constituem um registro visual inesquecível. Mais do que lê-los, literalmente devorei esses textos que iam das mais aloucadas fantasias ao ensino de história, geografia, geologia e todo tipo de conhecimento. Emília, a boneca de pano, teimosa e cheia de caprichos, intrigante e resmungona, mas adorável como poucas, convivia com o Visconde -um sabugo de milho que usava cartola e monóculo-, sempre sensato, sério e responsável. Narizinho e Pedrinho, duas crianças fantasiosas, aventureiras, inquietas e sempre desejosas de saber mais, podiam ser um de nós. A avó Dona Benta, com seus óculos e cabelos grisalhos, e a ajuda da negra Nastácia, a inefável "tia" criadora da boneca Emília, fazia do Sítio do Pica-pau Amarelo um lugar em que todos nós desejaríamos viver.

Reencontro
Passada a infância, imaginei que todos esses personagens passariam a ser parte de distantes recordações sobre uma meninice feliz cercada por bonecas e livros, brincadeiras e conhecimento. No entanto, a vida, o destino pessoal ou o do país, ou ainda ambos em intensa combinação, fizeram com que eu voltasse a encontrá-los em outras duas oportunidades. Uma delas foi no ano de 1976. Muito tempo havia passado desde minhas leituras infantis. Nossa biblioteca familiar, sob minha influência e depois a de minha irmã Gisele, havia incorporado outros textos. Junto a Monteiro Lobato havia Hernández Arregui, Rodolfo Puiggrós, Arturo Jauretche, Scalabrini Ortiz, Marechal, Cooke, Frantz Fanon, Walsh, Perón, Galeano, Benedetti, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Sartre, Camus e muitos outros. As fantasias haviam dado lugar às utopias, as aventuras, à militância, o conhecimento puro e quase asséptico, a outro conhecimento: o da estrutura cultural que, sob o efeito das ditaduras militares recorrentes, desaparecia em meio à desinformação e à espoliação de nosso país e da América Latina. Certa tarde de fevereiro de 1976, um dia irrespirável não apenas pelo calor, mas por aquilo que estava acontecendo [naquele ano, começou a ditatura militar na Argentina, que se prolongou até 1983], cheguei à casa de mamãe. Já não morava lá; no ano anterior, havia me casado com um colega de faculdade. Ao entrar, encontrei minha irmã encapando livros cuja simples posse, em caso de revistas domiciliares -muito frequentes naquela época-, era passaporte direto para o cárcere, na melhor das hipóteses. Gisele, ao mesmo tempo, estava cortando as primeiras páginas dos livros de Narizinho e Pedrinho e colando-as nos livros de Puiggrós, Fanon, Walsh ou Cooke. "O que você está fazendo, sua louca?", perguntei, sempre amável e diplomática. Ela me olhou e disse: "Eu, louca? Louca está a mamãe, que quer queimar todos os livros; aliás, ela já jogou no esgoto todos os "desca" e os "militancia'" ("El Descamisado" e "Militancia" eram dois semanários obrigatórios daquela época). Minha irmã continuou encapando os livros "perigosos" e retirando páginas dos livros de Monteiro Lobato, enquanto eu a contemplava, absorta, sem saber se devia rir ou chorar. Não fiz nenhuma das duas coisas e parti para minha casa em City Bell, nos arredores de La Plata, onde vivia com Néstor Kirchner, que havia deixado de ser meu colega de faculdade para se transformar em meu companheiro de vida. A casa de minha mãe nunca foi revistada, e nunca voltei a perguntar a minha irmã se Narizinho e Pedrinho continuam misturados àqueles livros da minha juventude. A mente humana sempre dá um jeito de esconder em algum canto aquilo que não desejamos recordar. Passaram-se os anos e a ditadura. Néstor foi eleito prefeito de sua cidade natal [Río Gallegos, capital da Província de Santa Cruz, no sul da Argentina], em 1987, e eu, deputada provincial em Santa Cruz, em 1989; ele foi eleito governador da Província em 1991, cargo para o qual se reelegeu em 1995 e 1999. No ano de 2003, foi eleito presidente da Argentina. Passados exatos 30 anos daquelas leituras, daqueles fogos. Começou seu mandato em um país à beira da dissolução econômica e social, depois da moratória. Sem esquecer as Malvinas [arquilélago sob dependência do Reino Unido e pretendido pela Argentina, cuja disputa ocasionou uma guerra em 1982] e uma geração desaparecida que havia bebido daqueles textos para tentar escrever uma história distinta. A partir de 1995, fui eleita, consecutivamente, deputada e senadora nacional. Era esse último posto que eu detinha quando ele assumiu a Presidência.

Sonhos e utopias
Foi no ano de 2008 que tive meu terceiro encontro com Narizinho e Pedrinho. Desta vez -coisas da vida- aconteceu no Brasil. O Brasil de Monteiro Lobato. Eu já não era uma menina que lia incansavelmente, ou tampouco a jovem militante peronista com o cigarro constantemente na mão que lia e discutia o tempo todo. Tinha 55 anos e era presidente da República Argentina em visita oficial aos irmãos da República Federativa do Brasil. Dividia a mesa, entre outros, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com o chanceler Celso Amorim quando, de repente, -jamais vou recordar o motivo- Narizinho e Pedrinho apareceram uma vez mais na conversa. Celso disse algo sobre Monteiro Lobato e eu lhe contei sobre minhas leituras infantis. Ele não conseguia acreditar. Também eram seus livros preferidos. Surgiu ali a ideia de patrocinar, por parte do governo do Brasil, uma nova edição das aventuras de Narizinho e Pedrinho, dessa vez com um prefácio da presidente da Argentina. E cá estamos. Não sei se este será meu último encontro com aquelas crianças de quem me sinto tão íntima. Se os filhos de meus filhos lerão livros ou serão aprisionados definitivamente pela web. Não sei. Espero que não. Por eles. Perderiam o prazer indescritível de abrir um livro sem saber o que vão encontrar, imaginar, fantasiar. Perderiam as sensações que significam atravessar essa vida construindo utopias e abrindo caminhos que pareciam definitivamente fechados para o nosso país e o nosso continente. Por isso, continuo a esperar por novos encontros. Por eles e por nós. Em resumo, por todos. A Narizinho e Pedrinho, a Emília e ao Visconde, a Nastácia e Dona Benta, e a todos os que contribuíram para alimentar meus sonhos e criar minhas utopias.



CRISTINA FERNÁNDEZ DE KIRCHNER é presidente da Argentina. Este texto foi originalmente publicado como prefácio de "Las Travesuras de Naricita". Tradução de Paulo Migliacci.

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